Reforma fatiada cria desconfiança e gera resistências setoriais, dizem especialistas

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 Para tributaristas, fatiamento pode tornar mais difícil a simplificação e a garantia de não aumento de carga. No final de maio, o governo federal e o Congresso Nacional anunciaram uma nova estratégia para tentar dar andamento às tratativas de reformar o complexo sistema tributário brasileiro. Desta vez, ficou acordado entre o ministro da economia, Paulo Guedes, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-RJ), que a reforma tributária deve ser encaminhada de forma fatiada, a partir de projetos de lei ordinária, e não apenas via Propostas de Emenda Constitucional (PECs).

O esquema deve se dar em algumas etapas, a começar pela apreciação pela Câmara dos Deputados do PL 3887/2020, de autoria do governo federal, que unifica o PIS e a Cofins e cria a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), nos moldes do Imposto de Valor Agregado (IVA). A Câmara também vai apreciar as mudanças no Imposto de Renda da pessoa física e jurídica no âmbito do PL 2337/2021, entregue no último dia 25 pela área econômica.

Já no Senado, a ideia é que a casa fique com a análise da PEC 110, idealizada pelo ex-deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR) e que está sob relatoria do senador Roberto Rocha (PSDB-MA). Esta proposta, que, entre outros pontos, reforma dois dos tributos mais complexos do país, ICMS (de arrecadação estadual) e ISS (de arrecadação municipal), ainda não tem previsão de ser apreciada.

Futuramente também devem ser pautados projetos de lei que tratam de um IPI seletivo, uma proposta para criar um “passaporte tributário”, espécie de novo Refis, e mudanças na tributação das relações de trabalho, com a possibilidade de desoneração da folha de pagamento. Os projetos, contudo, ainda não foram entregues.

Essa nova estratégia se difere das tratativas que vinham se desenhando para fazer uma reforma tributária bastante ampla, com o intuito de modificar radicalmente o complexo sistema adotado hoje no país e fazer atualizações na Constituição Federal. Nesse novo modelo, a intenção do Ministério da Economia é fazer com que, a partir da criação da CBS, o governo federal saia na frente e “dê o exemplo” para que os estados façam a adesão do IVA posteriormente. Em relação às mudanças no IR, a pasta argumenta que a ideia é corrigir distorções.

Resistências setoriais
Apresentar a reforma tributária em etapas, contudo, tem gerado preocupação em diversos atores envolvidos nas negociações. Segundo especialistas consultados pelo JOTA, o principal ponto de alerta é que dessa forma não é possível se ter o conhecimento de todo o “bolo” das mudanças, o que dificulta a compreensão sobre como ficará a carga tributária após as alterações. Além disso, cresce a complexidade para atingir duas das premissas essenciais: simplificação do sistema e não aumento da carga tributária.

“A proposta de mudanças no IR trará um aumento de carga tributária. Mesmo com o escalonamento das alíquotas haverá uma alta na taxação das empresas. O governo diz que apresentará um projeto para desonerar a folha de pagamento, o que poderia equilibrar essa alta. Mas, enquanto não tivermos essa visão do todo, não dá para garantir que isso vai acontecer”, diz o advogado Luis Carlos do Santos, diretor de tax da consultoria Mazars.

Segundo o advogado, os dois projetos apresentados até agora (CBS e IR) trazem, para a maior parte dos setores, uma expectativa de aumento da carga tributária. “O que falamos de uma reforma ser simplificadora não veio. Entendo que, politicamente, faz sentido não mexer no ICMS e ISS agora, mas pelo menos deveria ser possível enxergar tudo o que será proposto, inclusive as medidas para alavancar o trabalho, para ser possível ver que no final haverá redução”, completa.

Na avaliação de Breno Vasconcelos, sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados e pesquisador do Insper, o que mais preocupa é o efeito combinado que as duas reformas – da CBS e do IR – podem trazer. “Para alguns setores da economia, principalmente o de serviços, havia o entendimento de que a CBS aumentaria a carga tributária. Agora, ficou claro também que pode haver um aumento com a reforma da renda. O que fica evidente é a importância de se conhecer o todo para saber exatamente qual é o reajuste de planejamento que [as empresas] vão ter que fazer para os próximos anos”, diz.

No que diz respeito às alterações do Pis e da Cofins, o tributarista pontua que apesar de a CBS ser um avanço ao atual sistema, a chave da questão é que a alíquota única de 12% proposta para esse novo imposto pode aumentar a carga tributária para setores da economia que não contam com tantos créditos tributários como a indústria, o que deve gerar resistências. “A negociação de interesses para a criação da CBS envolve contrapartidas em relação a outros tributos para aqueles setores que hoje pagam menos de PIS e Cofins e passarão a pagar mais com a CBS. Isso é um dos exemplos de que uma reforma fatiada, sem o todo, vai gerando resistências setoriais”, diz Vasconcelos.

Economicamente, o impacto de reformar apenas o PIS e Cofins — sem fazer alterações no IPI, ICMS e ISS — também é significativo. Um relatório divulgado no ano passado pela consultoria Endeavor calculou que, caso a reforma tributária no Brasil abarque todos os tributos, seria possível reduzir em 68% o tempo gasto pelas empresas para compliance tributário. Isso implicaria em uma diminuição das atuais 885 horas por ano para gerir tributos para 285 horas por ano. Já em um cenário com uma reforma tributária só dos tributos federais, a redução nas horas para uma empresa com presença nacional seria de apenas 24%.

Já em relação às mudanças de tributação do Imposto de Renda e dos dividendos, Vasconcelos destaca que a decisão de limitar a opção de declaração simplificada apenas para quem recebe até R$ 40 mil por ano pode aumentar os gastos e a complexidade dos profissionais com serviços de contabilidade. “Essa reforma coloca várias atividades econômicas em situações que exigem mais custos para pagar tributo. Quando você está no Lucro Real é necessário ter uma contabilidade muito mais bem apurada e precisa, sobretudo porque aquilo que você não conseguir deduzir de despesa você vai pagar 34% [de IRPJ e CSLL] sobre o lucro”, explica.

Com a recepção negativa do mercado financeiro e das empresas à proposta de alteração no Imposto de Renda, Guedes pode acabar cedendo em reduzir as alíquotas pagas de IRPJ — atualmente em 34%. Ampliar a faixa de pessoas que poderão seguir fazendo a declaração de renda simplificada também está no radar. Nenhuma dessas concessões, entretanto, já foi anunciada formalmente.

De acordo com Carolina Chaves Hauer, sócia do G.A Hauer & Advogados Associados, fatiar a reforma da forma como foi proposto é uma decisão “contraproducente”, uma vez que não ataca o principal fator de distorção do sistema tributário brasileiro, que é o ICMS. A nível estadual, o ICMS é disparado o tributo de maior litígio. Só em 2019, segundo dados do Insper, o contencioso tributário estadual alcançou R$ 1,18 trilhão, o que representa 16,2% do PIB nacional daquele ano.

“Entendo ser necessária a inclusão do ICMS, que incide sobre o consumo, sendo este o enfoque principal da reforma tributária. Um pilar fundamental para acabar com a guerra fiscal, além de trazer maior segurança jurídica”, avalia Hauer. Para a tributarista, “tudo deveria ser legislado de uma vez e a implementação, então, ser feita em partes”.

Risco de impopularidade com a CBS
Na história recente das reformas tributárias, países como Canadá e Austrália se destacaram por adotar propostas de implementação das mudanças em fases. No caso do Canadá, contudo, houve uma experiência negativa em relação à adequação do IVA federal, que também pode ser experienciada no Brasil.

Segundo o economista Rodrigo Orair, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), quando o Canadá implementou o IVA federal, que tem como um de seus princípios a transparência fiscal, houve uma alta impopularidade com a mudança.

“O consumidor que antes não sabia quanto pagava direito de imposto passou a enxergar claramente na nota fiscal. Então, a população começou a questionar que estava pagando imposto para financiar o governo, mas em troca de quê? A medida foi muito impopular”, diz Orair.

Para o economista, se essa mesma impopularidade se repetir no Brasil, isso poderia paralisar outras mudanças, uma vez que as outras medidas ainda não foram sequer apresentadas à população.

“Nesse modelo proposto de reforma, o governo federal vai na frente, não resolve um problema subnacional [do ICMS], que no caso brasileiro é o maior, e ainda pode deixar com que outros grandes problemas fiquem pendentes porque se criou uma insatisfação popular, que vai gerar resistência para a continuidade da reforma, principalmente se ela não tiver sido legislada ainda”, avalia.

A reforma tributária ideal ainda é possível?
Há pelo menos três décadas o Brasil discute a necessidade de fazer uma ampla reforma tributária, que tenha como pilares principais assegurar uma maior segurança jurídica, garantir a justiça fiscal, simplificar procedimentos e fiscalização, racionalizar processos e não aumentar nem diminuir cargas tributárias. Para tentar alcançar algum desses objetivos, as instituições agora apostam na reforma por etapas.

Para Matheus Bueno, sócio do Bueno & Casto Tax Lawyers, a estratégia negociada pelo governo e Congresso também tem seus dilemas. “O problema de fatiar é discutir e parar no meio, mas o problema de fazer uma abrangente é nunca entregar nada”, diz, acrescentando que “ajustar o PIS e Cofins tira a insegurança jurídica em cima desses tributos, o que já é um avanço”.

Breno Vasconcelos, do Mannrich e Vasconcelos Advogados, destaca que mesmo com as modificações propostas pela CBS e no IR, o Brasil perdeu uma janela de oportunidade importante nos últimos anos para promover uma ampla reforma tributária.

“Nós tínhamos um presidente da Câmara dos Deputados [Rodrigo Maia] alinhado à ideia da reforma tributária ampla, tínhamos também os 26 estados mais o Distrito Federal assinando manifesto favorável à reforma ampla e tínhamos um relator que fez um trabalho ótimo. Mas nós perdemos essa janela de oportunidade por uma questão de protagonismo e vaidade política”, avalia.

Na visão de Ana Cristina Mazzaferro, sócia no Rayes e Fagundes Advogados Associados, o andamento que tem sido dado à reforma tributária pode acabar perdendo de vista um dos maiores objetivos das mudanças: criar um sistema mais justo.

“Além de todas as questões envolvendo complexidade e simplificação, era preciso incorporar as atualidades tributárias, e isso precisa ser melhor disciplinado, como tributações sobre eletrônicos e, principalmente, uma reforma tributária verde, trazendo incentivos para a redução da emissão de carbono. Isso tudo é muito atual, mas não está tão na pauta”, pontua.


Fonte: JOTA -CLARA CERIONI

 

 

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